É preciso sentir para entender – A Teoria da Colher

Muitas pessoas sofrem de doenças “carinhosamente” chamadas de doenças fantasmas. A manifestação dessas doenças é invisível aos olhos e assim essas pessoas sofrem com a incompreensão da profundidade de como isso afeta suas vidas nas tarefas mais simples. A fadiga, uma das manifestações mais comuns tem sua importância minimizada, o planejamento de cada mínimo detalhe da rotina ganha status de chatice e assim a doença, aos poucos passa a ser tida como “desculpa” ou “fingimento”.
Eu mesma já sofri na pele essa incompreensão (não que não acreditassem em mim, só não conseguiam entender) com pessoas que não entendem como simples mudanças de clima me afetavam a respiração, ou quando por algum motivo eu acordava com o pulmão “duro” e queimando e isso me tirava toda e qualquer força, ou quando eu simplesmente me sentia exausta e dolorida depois de um banho.
Você não precisa ver para acreditar, mas precisa sentir para realmente entender. E é isso que faz a já conhecidíssima “Teoria da Colher”, de Christine Miserandino. O texto dimensiona a convivência com o invisível e faz você quase sentir como é. Por mais famoso que o texto seja, nunca é demais reler.


Minha melhor amiga e eu estávamos conversando na cafeteria. Como sempre, era muito tarde e estávamos comendo batata frita com molho. Como garotas normais da nossa idade, nós passávamos muito tempo na cafeteria da faculdade, e a maior parte do tempo passávamos falando sobre garotos, música ou coisas triviais, que pareciam muito importante para nós naquele tempo. Não levávamos nada a sério e passávamos a maior parte do tempo rindo.
Enquanto tomava o meu remédio com um lanche, como costumava fazer, ela me olhou fixamente de maneira estranha, ao invés de continuar com a conversa. Então ela me perguntou, do nada, como eu me sentia tendo lúpus e estando doente. Eu fiquei chocada, não só pelo fato dela ter feito a pergunta casual, mas também porque eu presumi que ela sabia tudo sobre lúpus. Ela foi comigo aos médicos, me viu andar com uma bengala, e vomitar no banheiro. Ela me viu chorar de dor, o que mais ela queria saber?
Eu comecei a divagar sobre pílulas, e dores, mas ela continuou insistindo, e não se sentia satisfeita com minhas respostas. Eu estava um pouco surpresa, já que ela era minha colega de quarto na faculdade e amiga por anos; eu pensei que ela já sabia a definição médica de lúpus. Então ela olhou para mim com a cara que toda pessoa doente conhece bem, a cara de pura curiosidade sobre algo que uma pessoa saudável não pode realmente entender. Ela perguntou como me sentia, não fisicamente, mas como eu me sentia sendo eu, estando doente.
Enquanto eu tentava me manter calma, eu olhei ao redor da mesa atrás de ajuda, ou orientação, ou atrás de ganhar tempo para pensar. Eu estava tentando achar as palavras certas. Como eu respondo a uma pergunta que nunca consegui responder a mim mesma? Como eu explico em detalhes todos os dias sendo afetados, e passar as emoções que uma pessoa doente passa. Eu podia ter desistido, contado uma piada como geralmente faço, e mudar de assunto, mas eu lembro de pensar que se eu não tentasse explicar, como poderia esperar que ela entendesse. Se não consigo explicar para minha melhor amiga, como explicar meu mundo para outra pessoa? Eu tinha que ao menos tentar.
Naquele momento, a teoria da colher nasceu. Rapidamente peguei todas as colheres da mesa; peguei todas as colheres das outras mesas também. Eu olhei em seus olhos e disse “Aqui está, você tem lúpus.” Ela olhou para mim um pouco confusa, assim como qualquer pessoa ficaria se recebesse um buquê de colheres. O tinir do frio metal das colheres em minhas mãos, enquanto as reunia e passava para as mãos dela.
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Eu expliquei que a diferença entre estar doente e estar saudável é ter que fazer escolhas ou ter que pensar conscientemente sobre as coisas enquanto que o resto do mundo não precisa. A pessoa saudável tem o privilégio de ter uma vida sem escolhas, uma dádiva que muitos não levam em consideração.
Muitas pessoas começam o dia com possibilidades ilimitadas, e energia para fazer o que quer que desejem, especialmente os mais jovens. Para a maioria, não precisa se preocupar com os efeitos de suas ações. Então para transmitir minha explicação eu utilizei as colheres. Eu queria algo que ela segurasse, para que eu tirasse dela, já que a maioria das pessoas que está doente, sentem uma “perda” de uma vida que antes tiveram. Se eu estivesse com o controle de tirar as colheres, então ela saberia como se sentiria em ter algo, neste caso, lúpus, em controle da situação.
Ela segurou as colheres com animação. Ela não entendeu o que eu estava fazendo, mas ela estava sempre pronta para um bom momento, então eu acho que ela pensou que eu estava brincando, como geralmente faço quando falo de tópicos sensíveis. Mal sabia ela o quão séria eu estava.
Eu pedi que ela contasse as colheres. Ela perguntou porquê, e eu expliquei que quando você está saudável você espera ter um estoque infinito de “colheres”. Mas quando você tem que planejar seu dia, você precisa saber exatamente quantas “colheres” você está começando. Não existe garantia, você pode perder alguma no caminho, mas pelo menos ajuda a saber onde está começando. Ela contou 12 colheres. Ela deu risada e disse que queria mais. Eu disse que não, e sabia logo que este pequeno jogo iria dar certo, quando ela olhou para mim desapontada, e eu ainda nem havia começado. Eu sempre quis mais “colheres” por anos e não encontrei uma forma de conseguir, porque ela poderia ter? Eu também disse para ela ter consciência de quantas colheres ela tinha, e não deixar cair porque ela nunca pode esquecer de que tem lúpus.
Pedi para ela listar suas tarefas do dia, incluindo a mais simples. Enquanto falava suas atividades diárias, ou coisas legais de se fazer; eu expliquei como cada uma custaria uma colher. Quando disse que logo se arrumaria para trabalhar, como sua primeira tarefa do dia, eu interrompi e tirei uma colher. Eu praticamente pulei em seu pescoço. Eu disse “Não! Você não se levanta apenas. Você tem que abrir os olhos, e então se tocar que está atrasada. Você não dormiu bem na noite passada. Você tem que rastejar para fora da cama, e então você tem que preparar algo para comer antes de fazer qualquer coisa, porque se não fizer, você não pode tomar seus remédios, e se não tomar seus remédios você pode desistir de todas as colheres do dia e do dia seguinte também.” Rapidamente tirei uma colher e ela percebeu que ainda nem tinha se trocado. Tomar banho custou uma colher, só por lavar o cabelo e depilar as pernas. Alcançando altos e baixos tão cedo de manhã custaria mais de uma colher, mas resolvi lhe dar um desconto; não queria assustá-la de cara.
Trocar de roupa custou outra colher. Eu a interrompi e detalhei cada tarefa para mostrá-la como cada pequeno detalhe precisa ser pensado. Você não pode simplesmente pegar qualquer roupa quando se está doente. Eu expliquei que eu tenho que ver quais roupas eu posso fisicamente me vestir, se minhas mãos doem, botões estão fora de cogitação. Se eu estiver com alguma roxidão na pele, preciso usar manga longa, se estiver com febre preciso usar um agasalho para me manter aquecida e assim por diante. Se meu cabelo estiver caindo, preciso passar mais tempo para parecer apresentável, e então você precisa de mais 5 minutos por se sentir mal por ter passado 2 horas para fazer tudo isso.
Eu acho que ela estava começando a entender quando teoricamente ela ainda nem havia chegado ao trabalho, e lhe restavam 6 colheres. Eu então expliquei que ela precisava escolher o resto do dia sabiamente, já que quando suas “colheres” esgotarem, acabou. Às vezes você pode pegar emprestado as “colheres” do dia seguinte, mas imagine como será difícil um dia com menos “colheres”. Eu também precisei explicar que uma pessoa que sempre está doente vive com um pensamento constante que amanhã pode ser o dia que terei um resfriado, ou uma infecção, ou um número de coisas que podem ser perigosas. Então você não quer ficar com poucas “colheres”, porque você nunca sabe quando realmente irá precisar delas. Eu não queria deixá-la deprimida, mas precisava ser realista, e infelizmente estar preparada para o pior faz parte de um dia real para mim.
Nós repassamos o resto do dia, e ela aos poucos entendeu que pular o almoço lhe custaria uma colher, assim como esperar em pé o trem, ou até digitar por muito tempo em seu computador. Ela foi forçada a fazer escolhas e pensar sobre as coisas diferentemente. Hipoteticamente, ela teve que escolher em não fazer pequenas tarefas para que pudesse jantar a noite.
Quando chegamos ao final do seu dia de mentirinha, ela disse que estava com fome. Eu resumi que ela teria que jantar, mas que ela tinha apenas uma colher de sobra. Se fosse cozinhar, ela não teria energia suficiente para lavar os pratos. Se fosse comer fora, ela poderia estar muito cansada para dirigir de volta para casa. Então também expliquei que nem me preocupei em adicionar isso ao jogo, que ela estaria tão enjoada, que cozinhar estava fora de cogitação. Então ela escolheu fazer uma sopa, era mais fácil. Então disse que eram apenas 7 horas, você tem o resto da noite, mas talvez termine com uma colher, então você pode fazer algo divertido, ou limpar o apartamento, ou realizar algumas atividades, mas não pode fazer tudo.
Eu raramente a vejo emotiva, então quando a vi chateada eu sabia que a estava alcançando. Não queria que minha amiga ficasse chateada, mas ao mesmo tempo, eu estava feliz em saber que finalmente alguém me entendeu um pouquinho. Ela tinha lágrimas nos olhos e perguntou baixinho “Christine, como você consegue? Você realmente faz isso todos os dias?” Eu expliquei que alguns dias são piores que outros; alguns dias eu tenho mais colheres que outros. Mas eu nunca posso esquecer, nem deixar pra lá, eu sempre tenho que lembrar. Eu entreguei uma colher que estava guardando de reserva. Eu simplesmente disse, “Eu aprendi a viver com uma colher extra no meu bolso de reserva. Você precisa estar sempre preparada.”
É difícil, a coisa mais difícil que tive que aprender foi desacelerar e não fazer tudo. Ainda luto com isso. Odeio me sentir excluída, ter que escolher ficar em casa, ou não ter as coisas feitas do jeito que gostaria que fossem feitas. Eu queria que ela sentisse essa frustração. Eu queria que ela entendesse, que tudo que todos fazem acontece tão fácil, mas para mim são cem pequenos trabalhos em um. Eu preciso pensar sobre o clima, minha temperatura naquele dia, e todo o plano do dia antes de atacar qualquer coisa. Enquanto outras pessoas podem simplesmente fazer as coisas eu tenho que atacar e fazer planos como se eu estivesse planejando estrategicamente uma guerra. É neste estilo de vida, a diferença entre estar doente e estar saudável. É a linda habilidade de não pensar e só fazer. Eu sinto falta desta liberdade. Eu sinto falta de não ter que contar minhas “colheres”.
Depois que ficamos emotivas e falamos sobre isso por um tempinho mais, eu senti que ela estava triste. Talvez ela finalmente tenha entendido. Talvez ela tenha percebido que ela nunca poderia honestamente e sinceramente dizer que entendeu. Mas ao menos ela poderá não reclamar mais quando eu não puder sair para jantar em algumas noites, ou quando não posso ir até sua casa e ela tem que vir até a minha. Eu dei um abraço quando saímos do jantar. Eu tinha uma colher na minha mão e eu disse “Não se preocupe. Eu vejo isso como uma bênção. Eu nunca me forcei a pensar sobre tudo que eu faço. Você sabe quantas colheres as pessoas desperdiçam por dia? Eu não tenho espaço para tempo perdido, ou “colheres” perdidas e eu escolhi passar esse tempo com você.”
Desde aquela noite, eu uso a teoria da colher para explicar minha vida para as pessoas. Na verdade minha família e amigos se referem a colheres o tempo todo. Tem sido uma palavra código para o que posso ou não posso fazer. Uma vez que entendida a teoria das colheres as pessoas costumam me entender melhor, mas também penso que eles vivem suas vidas um pouco diferente também. Eu acho que não só é boa para entender o lúpus, mas para qualquer pessoa que esteja lidando com qualquer doença. Eu dou um pedaço de mim, em todo sentido do mundo quando faço qualquer coisa. Se tornou uma brincadeira interna. Fiquei famosa em dizer às pessoas brincando que elas deviam se sentir especiais quando eu passo um tempo com elas porque elas ficaram com uma de minhas “colheres”.

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